sexta-feira, 13 de abril de 2012

Êxodo rural às avessas


Para Professora Norma Montalvo de Soler.

            O Brasil é um continente e possui diferentes biomas em seu território. Há mais de meio século éramos deflorados pelos europeus ávidos por riquezas alheias. Impuseram-nos economicamente uma vocação meramente extrativista e monoculturista.

            Sofremos vários ciclos produtores que, em seu período de vigência, traziam alguma prosperidade para a região contemplada. Foi assim com a cana de açúcar no Nordeste, com a borracha na Amazônia, com o ouro nas Minas Gerais e com o café em São Paulo e Sul do país.

            Quando nossas reservas eram dizimadas, por exemplo, o ouro de Minas que ainda hoje é posto à mesa da corte e alta sociedade inglesa por incompetência lusitana, ou nosso produto perdia valor no mercado mundial buscava-se nova cultura em outra região.

            Naquela área ficava o espasmo, o vazio, a decadência e parcas lembranças daqueles que tinham os pés fincados na terra como raízes. Restava ali uma população a mercê da própria sorte.

            Política Social? Do que se trata? Nada que resgatasse os que ficavam para fechar a porteira ou permaneciam dentro dela. Não havia política alguma no Brasil colonial, Império ou República, que não estivesse para o benefício da medíocre classe dominante.

            A região Nordeste, de bioma mais instável, sempre “pagou o pato” pelas confusões no céu, fosse pelo choro das virgens celestiais chovendo muito em pouco tempo, fosse pela escassez de algodão nos ares para converterem-se em água.

            Secas devastadoras, como em 1879 e 1915, traziam miséria, fome, desnutrição e doença a uma população há muito abandonada e esquecida pelo poder central. A bola da vez, nessa época, eram os cafezais nas grandes fazendas do interior de São Paulo.

            Nesse período houve um grande êxodo do Nordeste ao interior de São Paulo e Rio de Janeiro, minguado logo depois pela chegada dos imigrantes europeus mais “robustos, afeiçoados e espertos”.

            Com o início da industrialização esse contingente populacional, expulso dos cafezais busca trabalho nas crescentes cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Esse povo miúdo, feio e miserável aos olhos dos gabolas aristocratas servia agora de lenha aos fornos das olarias recém-surgidas. Passam a povoar as encostas, morros e margens daquelas cidades.

            A esse povo só restava à dignidade pessoal já que a social lhe era furtada e a lembrança do amanhecer e pôr do sol de sua terra seca de onde vingaram a gente, prontos para a labuta e o sofrimento.

            No final da década de 1950 dá-se início, no planalto central brasileiro, a construção da nova capital do país, Brasília. Dessa vez, gente de todos os pontos do país, cearenses (como meu avô Júlio Luís Barbosa), potiguares, pernambucanos, mato-grossenses, capixabas, fluminenses, paroaras, bandeirantes migraram para a terra das plantas baixas em busca do que o Estado se fazia incapaz de lhes oferecerem em sua terra natal – emprego e comida.

            Nas décadas seguintes, de 1960, 1970 e primeira metade da década de 1980, há uma retomada da industrialização, do chamado milagre brasileiro, na verdade propaganda enganosa dos governos militares e que atraiu a população pobre com a promessa de trabalho e renda. Mais uma vez, os nordestinos foram recrutados para os subempregos e indigência inchando, cada vez mais, as grandes capitais do país, primordialmente as do Sudeste havendo uma crescente “favelização” nesses lugares.

            Desse período, trago fortes lembranças, principalmente da seca de 1983. Ano em que perdi parte dos amigos que seguiram empurrados pela força gravitacional da miséria para o sul com suas famílias. Igualmente a eles, milhares de conterrâneos seguiram em paus-de-arara, coletivos clandestinos ou pela Itapemirim rumo aos subúrbios.

            No entanto, muitos foram os teimosos que se negaram a romper o cordão umbilical com sua terra e sua gente. Para esses restava à lida em frentes de serviços, como construções de açudes subsidiados pelo governo, cuja ajuda concreta se limitava a uma tímida feira básica, aonde o feijão já vinha rico em gorgulhos.

            Muitas famílias de homens bravos, íntegros, honestos e acima de tudo crentes, cuja palavra dada tinha força de assinatura em cartório caíram no “conto do vigário” e na ilusão do “sul maravilha”.

            Esses homens e mulheres partiam levando suas “ninhadas” de pequenos, pois poucos eram aqueles que possuíam menos de seis filhos dependentes. Essa gente, arrancada pela miséria e pela fome, troca seus roçados secos por casebres amontoados em morros do sudeste.

            Mal desembarquem em terra estranha com gente esquisita, como diria Renato Russo, partem em busca de um serviço para alimentar o bucho, pois serviço foi só do que a maioria sempre sobreviveu já que sem estudo, emprego para eles não existia. Seus filhos agora brincam entre becos e sobre lamas e lajes. Na ausência dos pais logo aprendem o caminho do asfalto.

            Os anos se sobrepuseram e esses pais já não tinham controle sobre suas crias que vivendo na miséria urbana já não são regidos pelos mesmos preceitos de hombridade e subserviência de seus pais e avós.
            O retirante que chegara adulto na cidade grande nunca se homogeneizara com aquele universo e vive a ilusão de retornar a suas origens. No entanto, essa mesma gente agora submetida às leis e regras urbanas de sobrevivência há muito perdera sua ingenuidade e também já não se homogeneízam com aqueles que não partiram. São  brasileiros híbridos e sem identidade, pois não se veem completamente urbanos; tão pouco como o camponês que fora.

            Nesse meio tempo, seus filhos e os filhos dos filhos nascidos e formados nos morros e favelas e na inércia perversa do governo com ausência de políticas públicas e sociais efetivas, aliados a uma sociedade de consumo excludente e de valores morais e prioridades questionáveis passam a serem presas fáceis aos grandes cartéis e financiadores do tráfico de drogas e, por vezes, atores do jogo de violência de toda sorte.

            No final dos anos 90 e, por toda última década, presenciamos em fim um início de distribuição do avanço econômico vivenciado pelo país, que pela primeira vez em sua história apresenta avanços significativos em todas as regiões.

            Com o favorecimento do cenário mundial, aliado as políticas públicas, ainda deficitárias, mas presentes há uma melhoria substancial na qualidade de vida das cidades de pequeno e médio porte em todos os estados do Nordeste.

            Nas grandes metrópoles observa-se também o aumento da repressão a violência com melhoria do aparato tecnológico dessas cidades e de suas polícias.

            Essa conjuntura, dentre outros fatores, desencadeou na última dezena de anos um êxodo rural às avessas fazendo com que haja nas cidades nordestinas menores e medianas, assim como na zona rural, um aumento da violência, uso de drogas e criminalidade sem precedentes em nossa história.

            Essa violência qualificada formada nos subúrbios paulistanos, cariocas e de outras metrópoles pelos descendentes daqueles que partiram para o sul, em revoada de retorno, em fuga ou em busca de oportunidade, tem gerado o caos, aonde outrora existia uma vida pacata e segura.

            O cidadão interiorano camponês tem sido saqueado em seus bens, sua vergonha e dignidade por “mutantes” emigrados que não conhecem, tão pouco valorizam, alguma coisa de suas raízes. São homens contaminados pela perversidade e barbárie tão comuns nos lugares de onde partiram.

            Temos, sem dúvida, grandes exemplos de superação e vitória de parte daqueles que se foram e de seus formados. Cidadãos que superaram todas as dificuldades e venceram em terra alheia muito mais por méritos pessoais e não pela presença do Estado.

            Será que o preço do progresso passa inevitavelmente pela perda da paz e da segurança, pela frieza burocrática das relações, pela escassez de tempo para projetos e ações pessoais, pelo desequilíbrio emocional de nossos cidadãos?

            De tudo que caracteriza o progresso, talvez a violência sofrida pelo homem comum seja de longe o principal item que nos leva a questionar a real vantagem desse negócio de “desenvolvimento”.

            Até onde vale a pena esse modelo de crescimento e modernização vigente em nosso país? Será possível a tal da sustentabilidade também para nossa região e nosso povo ou isso é retórica de românticos? O ser humano é corrompido com o caminhar dos anos ou trás em si a voracidade do lobo sobre os iguais?
            Devemos apenas assistir da geral as transformações sociais a que estamos sujeitos ou cabe-nos o dever de lutar para participar da engrenagem que faz funcionar essa máquina? Já não está na hora de maturar nossa democracia e deixarmos de lado o discurso que ainda estamos engatinhando ou somos muito jovens nesse processo? 

Como diria Nelson Rodrigues – Aos jovens peço apenas que cresçam e tornem-se adultos (sem perder a alegria, por favor!). 

A todos, peço apenas que descruzem os braços!

Júlio Lima
Médico/ Professor


           

           

           

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O PARADÍGMA HUMANO

              A burrice humana está nas atitudes que invariavelmente chegará ao vazio, à inércia, a depressão, a um fim pouco glamouroso de quem coloca no dinheiro sua razão de viver.
              A cada dia que passa me convenço, cada vez mais, que o grande mau da humanidade é a própria raça humana ou seria, n’um passo à frente do pensamento, o fato do ser humano obrigatoriamente converter-se de criança à adulto.
              Sim, penso que o humano adulto, macho ou fêmea, é a razão da desordem ecológica e moral de nossa raça.
             Se bem observarmos, as crianças, pelo menos àquelas ainda não contaminadas por pais negligentes, permissivos ou perversos, possuem em sua essência a afabilidade, a confiança no próximo, a ausência de maldade, artimanha ou subterfúgios, a sensibilidade na percepção do outro, seja no cuidado ou na solidariedade.
             Junte algumas crianças de mesma faixa etária e deixe-as livres. A amizade brotará fácil como grão em chuva. A disputa de espaço, quando há, se dar por reprodução de atitudes geralmente observadas nos seus cuidadores.
             A criança não aprende somente com palavras; mas principalmente pela observação dos gestos e comportamentos dos adultos que as rodeiam. O pequeno aprende com o exemplo.
             Assistindo o espetáculo da cantora Maria Rita em homenagem a sua mãe Elis, deparamo-nos com a prática sobre a teoria interessante de Belchior, na qual sugere que mesmo a despeito de todos os nossos esforços e estímulos do mundo, reproduzimos o que vemos em nosso lar. O que vemos nossos pais, nossas fôrmas fazerem.
            Então o que dizer de uma família com dois ou mais filhos? Sabidamente as personalidades são diferentes. Sim são diferentes por que cada um captou, sintonizou ou simplesmente foi tocado por uma fatia também diferente de todo o espectro de atitudes, emoções e regras cotidianas apresentadas pelos adultos que mais convivem. Não se pode esquecer, nem tão pouco, desmerecer o papel da escola e dos grupos sociais nesse contexto, porém sua abrangência é principalmente na esfera superficial, agindo de forma limitada sobre a essência.
             De outra forma, ser adulto é na maioria das vezes enfadonho, cansativo, sem muita graça. É cinzento. O homem adulto se torna sem brilho quando a ele é apresentado à noção de dinheiro, do ter e do que isso pode fazer com sua vida.
            É apresentada uma falsa ideia, ao jovem e assumida pelo adulto, que felicidade só poderá ser encontrada e será diretamente proporcional ao montante de moedas e de poder que acumular. É imposto a esse adulto uma perversa corrida pelo acúmulo de bens, pela obrigatoriedade a uma posição social de destaque, ou então, condenado está a ser um mero "cidadão comum".
            Essa ideia doentia disseminada pelos tempos e gerações chega ao inconsciente coletivo gerando uma legião de almas perdidas em busca do nada ou do sei lá o que?
             Nessa busca sem fim, afogam-se em vícios lícitos como o trabalho exagerado, o álcool, o fumo, os ansiolíticos e antidepressivos; enquanto outros, caem na contravenção ou perversão. São os doentes de alma socialmente saudáveis e, por vezes, bem sucedidos.
             Se paga um preço muito caro pela perda da ingenuidade. Homens e mulheres mutilados de sua pureza e inteligência emocional e espiritual, amargam o purgatório da falsa felicidade do glamour. A busca incessante por algo que não possuem, por imaginar que será bom, até possuí-lo e não lhe satisfazer mais, alimenta o adulto de vazio.
             Há poucos dias morria o humorista cearense Chico Anísio e de si fizeram cinzas, as quais foram distribuídas entre dois lugares onde ele teria sido mais feliz. Um deles era sua terra natal que representava sua infância, sua fonte de vida, sua fortaleza, dentre tantos lugares festivos e "chiques" que frequentou e conviveu.
             Acredito plenamente que a maneira de se encontrar alguma lucidez nesse picadeiro que é o mundo, onde não passamos de palhaços tristes, é procurar promover um reencontro com a criança que fomos. Trazer para o cotidiano e para as relações a liberdade do menino, da menina, juntamente com sua espontaneidade e capacidade de dar gargalhadas, chorar quando doer, ser breve em esquecer as quedas e as amarguras, dar pulos em calçada quadriculada, cantarolar sem propósito somente pelo fato de estar vivo, com saúde e possibilidades a explorar, sem preocupação com os olhares e/ou julgamentos alheios.
             Temos que rir mais e percebermos que é inteligente sermos gentis, buscar um equilíbrio entre trabalho e lazer, usar terno e andar descalço, correr no sol e banhar-se na chuva, ser firme em seus propósitos e nunca perverso, ser competitivo, sendo também leal, ter posses e não ser avarento, ter poder e não ser tirano, gostar do azul, mas respeitando quem prefere o vermelho.
             Ao invés de sermos adultos por que não brincamos de sermos adultos?
Júlio Lima
Médico/ Professor