Para Professora Norma Montalvo de Soler.
O Brasil é
um continente e possui diferentes biomas em seu território. Há mais de meio
século éramos deflorados pelos europeus ávidos por riquezas alheias.
Impuseram-nos economicamente uma vocação meramente extrativista e monoculturista.
Sofremos
vários ciclos produtores que, em seu período de vigência, traziam alguma
prosperidade para a região contemplada. Foi assim com a cana de açúcar no
Nordeste, com a borracha na Amazônia, com o ouro nas Minas Gerais e com o café
em São Paulo e Sul do país.
Quando
nossas reservas eram dizimadas, por exemplo, o ouro de Minas que ainda hoje é
posto à mesa da corte e alta sociedade inglesa por incompetência lusitana, ou
nosso produto perdia valor no mercado mundial buscava-se nova cultura em outra
região.
Naquela área
ficava o espasmo, o vazio, a decadência e parcas lembranças daqueles que tinham
os pés fincados na terra como raízes. Restava ali uma população a mercê da
própria sorte.
Política
Social? Do que se trata? Nada que resgatasse os que ficavam para fechar a
porteira ou permaneciam dentro dela. Não havia política alguma no Brasil
colonial, Império ou República, que não estivesse para o benefício da medíocre
classe dominante.
A região
Nordeste, de bioma mais instável, sempre “pagou o pato” pelas confusões no céu,
fosse pelo choro das virgens celestiais chovendo muito em pouco tempo, fosse
pela escassez de algodão nos ares para converterem-se em água.
Secas
devastadoras, como em 1879 e 1915, traziam miséria, fome, desnutrição e doença
a uma população há muito abandonada e esquecida pelo poder central. A bola da
vez, nessa época, eram os cafezais nas grandes fazendas do interior de São
Paulo.
Nesse
período houve um grande êxodo do Nordeste ao interior de São Paulo e Rio de
Janeiro, minguado logo depois pela chegada dos imigrantes europeus mais
“robustos, afeiçoados e espertos”.
Com o início
da industrialização esse contingente populacional, expulso dos cafezais busca
trabalho nas crescentes cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Esse povo miúdo,
feio e miserável aos olhos dos gabolas aristocratas servia agora de lenha aos
fornos das olarias recém-surgidas. Passam a povoar as encostas, morros e
margens daquelas cidades.
A esse povo
só restava à dignidade pessoal já que a social lhe era furtada e a lembrança do
amanhecer e pôr do sol de sua terra seca de onde vingaram a gente, prontos para
a labuta e o sofrimento.
No final da
década de 1950 dá-se início, no planalto central brasileiro, a construção da
nova capital do país, Brasília. Dessa vez, gente de todos os pontos do país,
cearenses (como meu avô Júlio Luís Barbosa), potiguares, pernambucanos,
mato-grossenses, capixabas, fluminenses, paroaras, bandeirantes migraram para a
terra das plantas baixas em busca do que o Estado se fazia incapaz de lhes oferecerem
em sua terra natal – emprego e comida.
Nas décadas
seguintes, de 1960, 1970 e primeira metade da década de 1980, há uma retomada
da industrialização, do chamado milagre brasileiro, na verdade propaganda
enganosa dos governos militares e que atraiu a população pobre com a promessa
de trabalho e renda. Mais uma vez, os nordestinos foram recrutados para os
subempregos e indigência inchando, cada vez mais, as grandes capitais do país,
primordialmente as do Sudeste havendo uma crescente “favelização” nesses
lugares.
Desse
período, trago fortes lembranças, principalmente da seca de 1983. Ano em que perdi parte dos amigos que
seguiram empurrados pela força gravitacional da miséria para o sul com suas
famílias. Igualmente a eles, milhares de conterrâneos seguiram em
paus-de-arara, coletivos clandestinos ou pela Itapemirim rumo aos subúrbios.
No entanto,
muitos foram os teimosos que se negaram a romper o cordão umbilical com sua
terra e sua gente. Para esses restava à lida em frentes de serviços, como
construções de açudes subsidiados pelo governo, cuja ajuda concreta se limitava
a uma tímida feira básica, aonde o feijão já vinha rico em gorgulhos.
Muitas
famílias de homens bravos, íntegros, honestos e acima de tudo crentes, cuja
palavra dada tinha força de assinatura em cartório caíram no “conto do vigário”
e na ilusão do “sul maravilha”.
Esses homens
e mulheres partiam levando suas “ninhadas” de pequenos, pois poucos eram
aqueles que possuíam menos de seis filhos dependentes. Essa gente, arrancada
pela miséria e pela fome, troca seus roçados secos por casebres amontoados em morros
do sudeste.
Mal
desembarquem em terra estranha com gente esquisita, como diria Renato Russo,
partem em busca de um serviço para alimentar o bucho, pois serviço foi só do
que a maioria sempre sobreviveu já que sem estudo, emprego para eles não
existia. Seus filhos agora brincam entre becos e sobre lamas e lajes. Na
ausência dos pais logo aprendem o caminho do asfalto.
Os anos se sobrepuseram
e esses pais já não tinham controle sobre suas crias que vivendo na miséria
urbana já não são regidos pelos mesmos preceitos de hombridade e subserviência
de seus pais e avós.
O retirante
que chegara adulto na cidade grande nunca se homogeneizara com aquele universo
e vive a ilusão de retornar a suas origens. No entanto, essa mesma gente agora
submetida às leis e regras urbanas de sobrevivência há muito perdera sua ingenuidade
e também já não se homogeneízam com aqueles que não partiram. São brasileiros híbridos e sem identidade, pois
não se veem completamente urbanos; tão pouco como o camponês que fora.
Nesse meio tempo, seus filhos e os
filhos dos filhos nascidos e formados nos morros e favelas e na inércia
perversa do governo com ausência de políticas públicas e sociais efetivas, aliados
a uma sociedade de consumo excludente e de valores morais e prioridades
questionáveis passam a serem presas fáceis aos grandes cartéis e financiadores
do tráfico de drogas e, por vezes, atores do jogo de violência de toda sorte.
No final dos
anos 90 e, por toda última década, presenciamos em fim um início de
distribuição do avanço econômico vivenciado pelo país, que pela primeira vez em
sua história apresenta avanços significativos em todas as regiões.
Com o
favorecimento do cenário mundial, aliado as políticas públicas, ainda
deficitárias, mas presentes há uma melhoria substancial na qualidade de vida
das cidades de pequeno e médio porte em todos os estados do Nordeste.
Nas grandes
metrópoles observa-se também o aumento da repressão a violência com melhoria do
aparato tecnológico dessas cidades e de suas polícias.
Essa conjuntura,
dentre outros fatores, desencadeou na última dezena de anos um êxodo rural às avessas
fazendo com que haja nas cidades nordestinas menores e medianas, assim como na
zona rural, um aumento da violência, uso de drogas e criminalidade sem
precedentes em nossa história.
Essa
violência qualificada formada nos subúrbios paulistanos, cariocas e de outras metrópoles
pelos descendentes daqueles que partiram para o sul, em revoada de retorno, em fuga
ou em busca de oportunidade, tem gerado o caos, aonde outrora existia uma vida
pacata e segura.
O cidadão
interiorano camponês tem sido saqueado em seus bens, sua vergonha e dignidade
por “mutantes” emigrados que não conhecem, tão pouco valorizam, alguma coisa de
suas raízes. São homens contaminados pela perversidade e barbárie tão comuns
nos lugares de onde partiram.
Temos, sem
dúvida, grandes exemplos de superação e vitória de parte daqueles que se foram
e de seus formados. Cidadãos que superaram todas as dificuldades e venceram em
terra alheia muito mais por méritos pessoais e não pela presença do Estado.
Será que o
preço do progresso passa inevitavelmente pela perda da paz e da segurança, pela
frieza burocrática das relações, pela escassez de tempo para projetos e ações
pessoais, pelo desequilíbrio emocional de nossos cidadãos?
De tudo que
caracteriza o progresso, talvez a violência sofrida pelo homem comum seja de
longe o principal item que nos leva a questionar a real vantagem desse negócio
de “desenvolvimento”.
Até onde
vale a pena esse modelo de crescimento e modernização vigente em nosso país? Será
possível a tal da sustentabilidade também para nossa região e nosso povo ou
isso é retórica de românticos? O ser humano é corrompido com o caminhar dos
anos ou trás em si a voracidade do lobo sobre os iguais?
Devemos apenas
assistir da geral as transformações sociais a que estamos sujeitos ou cabe-nos o
dever de lutar para participar da engrenagem que faz funcionar essa máquina? Já
não está na hora de maturar nossa democracia e deixarmos de lado o discurso que
ainda estamos engatinhando ou somos muito jovens nesse processo?
Como diria Nelson Rodrigues – Aos jovens
peço apenas que cresçam e tornem-se adultos (sem perder a alegria, por favor!).
A todos, peço apenas que descruzem os
braços!
Júlio Lima
Médico/ Professor