segunda-feira, 15 de abril de 2013

A desvalorização da classe médica no Brasil

Foto:blog.sinaldeacesso.com.br


          Há algum tempo ando me questionando o que de fato está acontecendo na coxia da política de desvalorização e desqualificação da classe médica? Campanha fortemente abraçada pelos meios de comunicação que quase diariamente nos acorda com fatos denunciativos e condenatórios de visão unilateral, sem crítica das condições, ambientes e fatores que contribuíram para o fato relatado e sem o devido levantamento do acontecido e pronunciamento das partes envolvidas, na maioria das vezes.  
           
         Outro dia reproduzi nas mídias sociais uma frase muito bem colocada do amigo Rodrigo Moraes que dizia que o maior sonho dos políticos, governantes e da imprensa é substituir o artigo 196 da Constituição Federal que diz que a Saúde é direito de todos e dever do Estado para a Saúde é direito de todos e dever dos médicos. 

      Entra ano sai ano, entra mandato sai mandato, entra governante sai governante e nada acontece de novo, para melhor, no sistema e na qualidade de gestão e otimização da saúde oferecida a população e para àqueles que trabalham na ponta do sistema, seja na atenção primária, seja nas portas das emergências. 

          Sofremos todos: Usuário, médicos, enfermeiras, auxiliares, técnicos. São horas trabalhadas sobe tensão. Vejo com imenso pesar, amigos plantonista que após 25, 30 anos de dedicação de suas vidas submetidos a condições adversas no ambiente de trabalho e antes da tão sonhada aposentadoria, se veem presos a máquinas de hemodiálises, vítimas de câncer, coronariopatias, diabétes, síndromes neurológicas e de estresse psicológico intenso.

           A população, por sua vez, carente, abandonada, desinformada, sem a básica noção de cidadania e de direitos, assim como, deveres, sem educação para o uso coerente do capenga sistema de saúde que lhe é oferecido, por vezes, procura assistência em lugares e horários inapropriados e se desespera. 

          O sistema privado de saúde em atividade em nosso meio tão pouco se destaca ou é melhor que o sistema público na sua relação com o profissional médico e da saúde em geral. Para o usuário, mostra-se apenas com algum diferencial nas tecnologias oferecidas, mas que seu acesso é exaustivamente dificultado. Na prática, vale o jargão popular que o conceitua como “susão plus”. 

         Observa-se grande desrespeito e inoperância da maioria dos planos e seguros de saúde que há muito se colocara como terceira pessoa na relação médico-paciente. Atualmente, os pensadores deveriam modernizar tal conceito para relação plano-médico-paciente. Isso mesmo! E nessa mesma ordem, pois o médico encontra-se espremido entre os dois. 

          Há muito tempo que do médico vem sendo subtraída sua autonomia na condução de casos clínicos dos mais simples aos mais complexos.
         O neoliberalismo não confirmou a tão proclamada teoria da harmonização do sistema que defendia que haveria melhora cada vez maior dos serviços e da qualidade de vida do cidadão, quanto maior fosse a competitividade entre as empresas. No meio do caminho, o “caldo desunerou” e o que se observa é o canibalismo entre empresas e o “corporafagismo” entre as empresas ( meio corporativo) e seus empregados, chamados no dicionário politicamente correto de colaboradores.

           Parte desse esfacelamento social sofrido pela classe médica que se tornou a “Geni” social nos últimos tempos deve-se a nós mesmos, os médicos.

      Tivemos uma escola aonde a hierarquia e submissão só se assemelham aos militares que, por “coincidência” no meu entender, é a outra classe mais combatida e desprestigiada pelos governantes e pela imprensa. 

       No inicio de carreira nos submetemos a trabalhar até para o poder público, no caso de muitas prefeituras do interior, com contratos verbais sem nenhum direito trabalhista ou de insalubridade. Submetido a carga horária abusiva, condições de trabalho inexistentes e tendo suprir a falta do Estado na vida das pessoas e quando sai, leva consigo uma sensação de que já foi tarde.

           Não raro, ouvimos colegas lançarem a mão ao peito e verbalizar com ar de orgulho: “Terminei um plantão de 24h e vou para outro de 12h, 24h ou 36h”. Isso faz parte do condicionamento e subserviência psicológica para não contestarmos situações desumanas de trabalho, pois parecer contestador mexe com os brios dos médicos que não podem serem vistos ou percebidos como baderneiros ou como alguém que também possui fraquezas ou limitações.

           Por outro lado, os salários estão cada vez mais vergonhosos fazendo com que o médico multiplique a necessidade de horas de trabalho para manter um mínimo padrão de vida exigido pela sociedade. É o famoso aperta de um lado e estica do outro. 

           E dessa forma, muitos de nós exercemos a profissão exaustos e desestimulados. O paciente exige o exame, o plano não autoriza o internamento, o acompanhante exige pressa, este, menos por preocupação com o moribundo e mais por ficar furioso por ter que esperar que o exame seja processado, o medicamento faça efeito, o médico reexamine o paciente.

       O Conselho Federal de Medicina não consegue se fazer ouvir em suas diretrizes de piso salarial, condições e horas de trabalho, redistribuição dos médicos nas cidades e regiões do país. Um exemplo do pouco caso que a maioria dos gestores fazem com que diz o Conselho Federal de Medicina é quando afirma que seus filiados deveriam atender uma média de 36 pacientes em um período de 12 horas de plantão. 

          Na prática, a maioria dos diretores dos serviços criam uma logística no qual assediam moralmente o profissional médico para atender mais e mais rápido, submetendo o profissional a trabalhar sob pressão, tenso e vulnerável a cometer algum equívoco. Quando este acontece é o número de registro do conselho (CRM) do profissional que ali está. Então chega a imprensa ofegante e salivando por mais um escândalo. Os mesmos diretores que forçaram àquela situação, chamados para se pronunciarem saem ensacados em seus paletós, cara de indignação ou perplexidade a pronunciar: “Vamos apurar os fatos e punir severamente os culpados”. 

          Seria isso, um possível roteiro de um pastelão mexicano, se não fosse parte da realidade vivenciada por muitos profissionais de saúde, médicos em especial.

          Vi um texto em uma rede social escrito por um médico, Dr. Dreg (pseudônimo do autor), na página do facebook “Diário de um plantonista”, o qual transcrevo na íntegra como exemplificação de um desabafo em uma situação vivenciada por muitos. 

Vivenciamos tempos de desvirtuamento, desorganização e descaso com a profissão médica, talvez, a mais antiga e tão nobre quanto todas as demais.

 Júlio Lima 
Médico/Professor

“          O que é ser um bom médico para a população em geral?
         Tenho visto que um bom médico é aquele que se permite realizar as suas funções de acordo com o que os seus pacientes ordenam: 
- Quero uma receita!
 - Pois não! 
- Quero tal exame! 
- Pois não!
 - Quero ser internado! 
- Pois não! - Quero um atestado! 
- Pois não!
           Quando se diz não, você não presta. 
         Negar uma receita de medicamentos de uso contínuo numa emergência? E os de uso controlados? Que absurdo! A população não tem atendimento! E agora? O médico plantonista tem que arcar com essa falta de estrutura da saúde do Brasil? Ele tem que realizar atividades além das suas funções porque a população está desassistida? Por que os postos de saúde não têm médico? Por que também as pessoas não querem marcar consulta?
         O médico plantonista é a porta de entrada do paciente. Ele entra, joga em cima de você toda a revolta. Ele desconta em você que está ali trabalhando e exercendo a sua função.
           E você tem que engolir.
       Eu não deixo de ser um bom profissional porque nego um favor, porque não tenho tempo em um plantão de 12 horas de conversar muito com um paciente, porque tenho que ser objetivo e direcionar a consulta. Nem porque não reproduzi a receita do parente da funcionária da recepção, tampouco porque pedi para a paciente marcar uma consulta eletiva com uma queixa de queda de cabelos na emergência. Eu não estou ali para dar um jeitinho, nem pra fazer favores. E o não custa nada, custa muito!
         Entender a dor de um povo aflito eu entendo. Eu também faço parte desse povo aflito. Mesmo que eu não necessite ir a um pronto-socorro do SUS. Mas eu vivencio todos os dias essa realidade. E pago um preço bem alto para permanecer trabalhando ali. Mas sou julgado o tempo inteiro e esperam uma brechinha para me prejudicar. Por que a saúde virou uma guerra e nessa guerra salve-se quem puder. 
      Não podemos, sozinhos, solucionar todas as carências do nosso sistema de saúde. Eu não posso atender 100 pessoas em 12 horas porque eu me acho bonzinho. Eu não trabalho numa rede de fast-food.    
        Estarei fingindo que trato de doenças e as pessoas fingindo que acreditam. Mas quando eu falo sobre a exploração dos médicos escuto o lado dos recalcados que dizem: "vocês devem parar de reclamar e trabalhar mais, dormem a noite inteira nos plantões!". 
        É tanto absurdo reunido que é melhor abstrair. 
      Sou plantonista e não realizo terapias familiares, não sou especialista em resolver brigas conjugais, não posso atender todos pela ausência de profissionais, não estou de plantão para trocar receitas, fornecer atestados sem motivos, solicitar exames de rotina, internar pacientes sem indicação e nem para trabalhar além das minhas forças. 
      Farei o meu melhor, sempre. Mas não sou o salvador da pátria.
     Pronto-Socorro não é lugar de consulta de rotina, de trocar receitas, de fazer terapias, de suprir carências e exigir exames. 
    Pronto-Socorro é lugar de urgência e emergência. Acontecimentos que não podem ser adiados, pelo perigo de morte ou pelo próprio agravo da situação. 
   Sou a favor de campanhas educativas em rede nacional para esclarecer à população essa grande diferença. Quem sabe assim possamos exercer a nossa profissão com mais dignidade, respeito e maior qualidade nos atendimentos.
 “ Dr. Greg, do Diário de um Plantonista.