Vivemos em um
mundo de superlativos onde a grande e avassaladora maioria de todas as
estruturas são pensadas e preparadas para os indivíduos “hígidos”. Os índios fazem a seleção, não natural
logo no nascimento, destruindo todo e qualquer indivíduo diferente. No Hawaí,
bastava o recém- nato apresentar um nevus
para ser descartado como impuro, serviria de lanche aos tubarões (Fábio Castor).
Modernamente, o darwinismo encontra respaldo no mundo gerido pelo capital e,
dessa forma, é estabelecido o modelo físico e psicológico dos que deterão o
provimento de cidadão e cidadã. Essa hierarquização se dá a partir do que o
modelo liberal entende como adequado e apto para viver sob sua égide, ou seja,
mão de obra produtiva com força motriz ligada no botão da capacidade máxima e os
que estarão à margem de sua ordem social.
Segue-se, nesse contexto, a
construção de um verdadeiro mosaico onde se classifica ou estigmatiza o
indivíduo por alguma característica física ou mental compreendida como
“inadequada” e “ não hígida”. O indivíduo agora alheio de suas características
outras recebe uma espécie de marca, ferro, carimbo, etiqueta. Como a sociedade
é dinâmica e se diz evoluir, dinâmica também é a maneira como os “hígidos”
balizam os deficientes. Cego passa a deficiente visual, aleijado agora é
portador de necessidades especiais e, por aí vai.
A mim causa náusea a nossa
hipocrisia social e só desnuda aos meus olhos que não há interesse, além do escambo
etimológico, em provocar mudanças reais, práticas e profundas no centro da
questão no que concerne, além de direitos subsistenciais, direitos de
autogestão e participação de processos e decisões. Há apenas uma maquiagenzinha
para que não possamos nos incomodar com que vemos ou ouvimos das ‘limitações”
alheias.
A hipocrisia humana é, sem sombra de
dúvidas, o maior aleijo da humanidade. Lidamos com os “não hígidos” ou
deficientes da mesma forma como lidamos com a morte. Negando-os. As valas
comunitárias de cadáveres na idade média foram substituídas, primeiro por
catacumbas, depois jazigos em mármore e oponentes, porém em cercado distante
dos centros e, por fim, lápides em belos jardins floridos. Tudo como forma de
negar a existência da morte. Assim, o perneta se torna portador de necessidades
especiais.
Não consigo visualizar políticas
governamentais consistentes de atenção a essa fatia da população. No Brasil,
historicamente os deficientes são assuntos de igrejas, associações e entidades
privadas filantrópicas com o governo atuando aí como terceira pessoa, alheio e
com envolvimento totalmente superficial.
Diariamente questiono-me quem
realmente é aleijado, deficiente ou portador de necessidades especiais?
O chefe tirano de uma repartição é o
que?
O capacho lambe-botas que se anula
como pessoa é o que?
Quem deseja sempre o impossível ou o
que a outro pertence, como o denomino?
Quem não consegue enxergar a dor, a
fome, à miséria, paisagem da janela de seu cotidiano, o que é?
Não é cego quem não enxerga um palmo
além do umbigo?
O sujeito indisponível por excelência, sem tempo, nem interesse para
ouvir um amigo, um conhecido ou um transeunte que o chama não é surdo?
Um verme que silencia diante de uma injustiça ou se beneficia dela. O
porco que não fala a verdade e usa a mentira para iludir, enganar, ludibriar
alguém, seja por trocados, facilidades ou posição social não é um mudo?
O parasita que sem menor pudor quer viver à custa de outra pessoa,
sugando-lhe energia e o seu melhor não é um paralítico?
O indivíduo que amanhece amargo e destila seu azedume e não apresenta a
capacidade de emitir uma palavra gentil, otimista e doce a alguém, não é um
diabético descompensado?
Quem por inveja, maldade ou incompetência elimina ou impede o crescimento
de alguém não é um anão?
Quem freqüenta a igreja, debulha terço, esquenta bíblia em suvaco, vive
em semáforos na campanha do quilo ou nos sons dos tambores de origem africanas,
mas se comporta como o sete pele em seu convívio social não é um miserável e
aleijado da alma?
Então, senhoras e senhores quem realmente são os deficientes? Os
aleijados? Os portadores de necessidades mais do que especiais? São os que não
andam, não falam, não ouvem, os mutilados de um membro ou órgão por ausência do
Estado, contingência da vida ou situações externas e alheias às suas vontades
ou àqueles citados anteriormente que apresentam deformidades na alma e no
caráter por opção ou dolo?
Sonho com o dia em que nós, de maneira honesta e imparcial, encararemos o
“portador de necessidades especiais” por causas externas não como incapazes,
mas como alguém que pode ser o que quiser dentro de suas habilidades. Quando
será que teremos governos sérios que não insistirão em dificultar o trabalho
dos que realmente agem?
A esperança se agiganta com a teimosia de todos que praticam o bem e no
respeito ao próximo, pois tenho infinita certeza que os maus e mentirosos,
verdadeiros aleijados, tropeçarão sempre em suas maldades e mentiras e que
aqueles que visivelmente são deficientes por intempéries serão vistos não com
os olhos da desconfiança e do desdém, mas
possam ter oportunidades, autonomia e respeito nesse mundo conservador.
Júlio Lima
Médico/Professor