Para: Fábio Castor
Tive uma infância muito festiva e
alegre. Parte dela vivenciada entre o sertão dos Inhamuns e o Cariri cearense,
na fazenda Cacimbas, município de Assaré.
Quando
criança, a principal atividade agrícola daquela região era a cultura do algodão
que convivia com a pecuária e plantio de subsistência do arroz, feijão, milho e
frutas diversas.
A
semana era de muito trabalho, a qual se iniciava logo que o sol expulsava a
madrugada e se estendia até à tardinha, quando o sol já cansado, se recolhia.
Não
existia, nas Cacimbas nessa época, energia elétrica. À noite, todos se reunião
na casa grande para uma boa rodada de prosa à luz da lua e vigiada pelas
estrelas. No oitão da frente ficavam os adultos que papeavam enquanto
debulhavam vargem de feijão ou desencaroçavam o algodão que seria vendido em
arroubas.
No oitão de trás ficava a moçada jovem
com violão a cantarolar, jogo de baralho, brincadeiras como “cai no poço”, onde
o rapaz e a moça ensaiavam um enamoramento. E por fim, no meio da casa, nos
terreiros e no meio do povo dando conta de tudo que se passava e se conversava
estavam os meninos e meninas provocando peraltices.
Nos finais de semana, noite de sábado
mais precisamente, existiam os sambas, como eram chamadas as noitadas de forrós
do lugar.
Não se comentava n’outra coisa que não
fossem os acontecimentos do samba passado e a expectativa do samba que viria.
O cenário dessas festas era um
espetáculo à parte. No terreiro das casas montavam-se as bancas de comidas,
bebidas e de jogos. Tudo sob a luz do lampião a gás e lamparinas com querosene
espalhadas por todos os lugares.
Boa parte da alegria da festa estava no
terreiro. No bolo pão de ló feito na lata de sardinha como fôrma e no forno à
lenha, nos filhóis de goma saindo quentinho do óleo fervente, da galinha de
capoeira feita na hora para tira-gosto dos consumidores de aguardente de cana (cana
de cabeça) ou cerveja enterrada e refrigerada em balde de terra. O jogo
preferido, de longe, era o bozó, onde os jogadores apostavam seus trocados em
números ou símbolos de times de futebol organizados em duas fileiras sobre uma
mesa, cujo comando era do dono da banca de jogo, que lançava dois dados
sequenciados. Àquele que acertasse os dois valores saia vencedor naquela
rodada.
No salão de dança, outro cinema (como se
referiam as coisas consideradas bonitas). As mulheres de saia ou de vestido,
boca pintada e de pó forte no rosto colocavam-se nas arestas do salão formando
uma espécie de círculo mal feito à espera do convite pelo cavalheiro para uma
parte de dança. Era uma festa extremamente democrática, tinha pirralhos,
jovens, adultos e idosos balançando as cadeiras e mostrando os dentes de
felicidade. Em cima de uma mesa ou n’um canto da sala estava o sanfoneiro,
acompanhado do zabumbeiro, triângueiro e tocador de pandeiro.
O termômetro da festa era a poeira no
meio do salão. Se assim ocorresse, o sanfoneiro era bom. E tome samba a noite
toda, o fole roncava, triângulo tinia, pandeiro piava e zabumba amanhecia rouco
e de couro fino.
Nessas festanças, com essa gente gaiata
cheia de felicidade no rosto e nos pés, sempre ocorriam fatos que viravam
“causos”. Era o sujeito que dançava abufelado no cangote de uma nega a noite
todinha e que se escondia na hora da paga da quota do sanfoneiro; era o caboclo
que torava as correias das japonesas de tanto arrastar o pé; eram as caboclas
polidas, “educadas” que despachavam seus pretendentes, que não as interessavam,
com uma delicadeza sui generis.
Uma das maiores riquezas do povo
nordestino, principalmente da população mais humilde, é a espontaneidade. É a
verdade sem entrelinhas. Eufemismos não existiriam se dependessem dessa gente.
Certa vez, num samba de Loló (D. Gulora,
epônimo de Glória) estavam Pedro Monteiro, cabra bom, e Antonieta, cabocla
polida, educação britânica perdia feio!!!!
Pedro tinha uma fama um tanto quanto “injusta”.
Diziam que ele era danado pra acabar samba com as bufas que soltava no meio do
salão. Como diziam: - Pôôôôde, caba véi!!!!!!
Pois bem, estava Nieta em pé no canto da
sala, braços cruzados e acompanhando a música com a cabeça pra lá e pra cá de
forma ritmada, quando Pedro Monteiro se aproxima, pega no ombro da moça e faz o
convite:
- Nieta, vamos dançar?
Antonieta se ajeitou toda, puxou o
vestido ajustando-o bem, descruzou os braços levando-os a cintura, inclinando
levemente a cabeça, olhou bem para Pedro Monteiro e disparou em voz altiva:
- Deixou o cú em casa?
Pedro, sem pestanejar, sem ungir, nem grunhir
balançando a cabeça e seguindo o ritmo do xote ensaiou alguns passos
solitários, enquanto deixava o campo de visão da morena da pele de jambo e
olhos agatanhados.
Nos sambas da minha terra também
marcavam presença as moças que vinha da cidade. Essas usavam salto alto com
trazeira do sapato fino e longo feito um punhal. Aquilo era uma arma.
Itim (apelido de Adailton), muito enxerido,
convidou uma dessas moças para dançar. A nêga peituda e rabuda, mais enxerida
do que Itim, rebolando as cadeiras num vai e vem frenético e desajeitado, pisou
tanto no pé do usurado que mal o sanfoneiro deu o último acorde da música, o
caboclo largou-se da dançarina faceira e partiu, mancando, em direção à
cozinha, aonde se encontrava Loló (a dona da festa).
- D. Gu-Gu-Gulora (ele era meio gago), a
senhora tem um remédio para botar nos meus pés que estão ardendo de dor que uma
impestada do Assaré pisotiou o coitado todim? Tá doendo deeemais, homi!
Lóló era uma espécie de “Bombril”
sertaneja: comerciante, curandeira, enfermeira, conselheira, pau pra toda
obra...
- Tenho meu fí, pera que vou buscar.
Loló foi ao quarto, revirou toda
medicação que tinha e encontrou uma pomada já antiga e cujo nome estava meio
apagado.
- Pronto, meu fí, passe isso aqui que
você fica bomzim.
Itim, se vendo de dor, pegou a pomada e
passou-lhe nos pés, quando, da sala, se ouvi o grito:
- Aaaaarri muleeessta, que peste é essa
que a senhora me deu, D. Gu-gu-gulora? Tá ardendo deeemais, homi!!!!
Loló aperreada com a reação causada pela
medicação foi ler o nome da danada da pomada, que estava incompleto, apenas com
as iniciais. Uma letra “F” e uma letra “E”.
Loló olhou pra Itim com firmeza e
desparou:
- Há meu fí, deixe de froxura,
sujeito!!! Essa pomada é uma rilíquia, tá veno, não?
- E c’umé o nome dela, pelo amor de Deus?
- O nome? É...é...é Fe-fe-fe...ah!
(faltando-lhe a paciência) É Fe - ó – Fó passe na perna, pronto! E deixe de
pergunta difícil. N’um já dixe que era pra isso!
Itim com pé pisado e intoxicado perdeu o
resto da noite em um canto de cerca esperando a dor passar.
Muitas são as lembranças, muitas são as
histórias, muitos foram os sambas inesquecíveis, muitas foram as alegrias e
risadas. A maneira encontrada pelo povo nordestino e em especial, o cearense, para
se manter com a mente sã a despeito de todo sofrimento e descaso do estado foi
rir, rir muito e rir de si mesmo, de suas qualidades e defeitos suavizados na
alegria de viver, amor ao próximo, nas festanças, na devoção sempre presente e em
boas gargalhadas.
Júlio Lima
Médico/ Professor