terça-feira, 14 de junho de 2011

Repeitem nossos valores - e cabelos, por Henrrique França

Amigos, faço minhas as palavras de Henrrique França. Comu
   [@RiqueFranca]

               Francisco César Gonçalves é um sertanejo destemido e
sensível. O cara cresceu no burburinho cultural brasileiro-nordestino,
tornou-se um irreverente e talentoso cantor, encantou o mundo com suas
canções e acabou na vida administrativa. Hoje, secretário de Cultura
da Paraíba, Chico César mostra que, apesar das assinaturas e
burocracia necessárias ao cargo que exerce, permanece um dom Quixote
da cultura do Nordeste, sua terra, sua gente, seu valor.


               Negro, de família humilde, sertaneja, fora dos padrões
emburrecidos de “beleza”, Chico tem na palavra sua espada. E com ela
vence batalhas, apesar de fazê-lo diante da impossibilidade de ferir
um ou outro. Esses dias, o nome de Chico César voltou a provocar
reações positivas e negativas, depois que o secretário declarou que
grupos musicais que destoantes da tradição musical nordestina – as
bandas de forró de plástico ou as duplas sertanejas
– não serão
contratados pelo Governo da Paraíba para a programação do São João
local.

               Com a polêmica nos principais sites de notícias da
Paraíba e do Brasil, com seu nome entre os dez assuntos mais
comentados do twitter, Chico César foi vítima e vilão, ganhou mais
respeito por alguns e insultos por outros. E, pasmem, ganhou um bom
número de internautas que declararam sequer conhecer esse “tal Chico
César”! Os argumentos contrários à declaração do cantor se baseiam na
vontade popular: se o povo gosta, dê a ele todo lixo em forma de
canção, dancinhas e gritinhos.

               O argumento é frágil e pouco convincente. Se assim
fosse, que tal ampliarmos a discussão para outras áreas. Se o povo
gosta de fumar, libera o cigarro; se o povo gosta de acelerar, libera
essa besteira de limite de velocidade nas ruas; se há pais que não
acham necessário matricular seus filhos em uma escola (melhor levá-los
para pedir um trocado nos semáforos), deixe que eles, como pais
decidam. Parece exagero? Sim, mas não é. A música é, sim, um
instrumento de mudança social. Aliás, qualquer forma de arte possui
essa capacidade.

               Então, quando eu relego a décimo plano uma música que
nos identifica como povo, que fala a língua do Nordeste, que nos
remete a memórias ancestrais dos nosso pais, avós, que valoriza as
pessoas, as relações, mesmo os embates históricos, as lembranças de
uma trajetória nordestina – seja cantando um pássaro ou um lamento do
homem sertanejo, seja narrando o despertar da adolescência da menina
do interior ou uma disputa engraçada de embolada -, estou lançando
toda essa carga de história aos resíduos memoriais.

               Não, não se trata de alienação ou de direcionamento do
que eu devo ou não ouvir. Trata-se, sim, de respeitar o povo a quem
ele – Chico César – serve. Caso contrário, há quem concorde em pagar
caro por artistas que elevem em suas canções o machismo exacerbado, o
xingamento gratuito, a insinuação de pedofilia, a exposição de
mulheres como pedaços de carne rebolando sobre um palco, sendo
desejadas de forma tão obscena que se torna vergonhoso por se dar em
espaço público, que traz em suas letras refrões do tipo “vem molhar o
meu corpo, quero ver se vai resistir o que tenho aqui”, “o meu bolso é
minha guia, a bebida é a razão”, “eu juro não vou sossegar - se você
não me der, desculpa, eu vou roubar”? Tem mais: “Vai começando na
cabeça/ Vai descendo pro queixinho/ Menina gostosinha, eu sou o seu
neguinho/ Alisando, alisando, esse lindo umbiguinho/ Se você não
aguenta fale assim pra mim: Ai painho, a-a-ai painho.”

               Atenção, críticos e suas metralhadoras giratórias. É
isso que vocês estão defendendo? Não se trata, aqui, simplesmente de
arte. Trata-se de comportamento, respeito, o mínimo de coerência.
Porque quando um “painho” estupra a própria filha ficamos todos
revoltados. Porém, quando um “artista” canta isso, insere uma voz de
criança para cantar “a-a-ai painho” ninguém se constrange ou se
indigna? É isso mesmo? Chico César é um artista que está secretário.
Não cabe aqui avaliar sua atuação administrativa, mas esse é o mesmo
homem que escreveu, na canção-desabafo “Odeio Rodeio”: Me tira a
calma, me fere a alma, me corta o coração. É bom pro mercado de disco
e de gato, laranja e trator / Mas quem corta a cana não pega na grana,
não vê nem a cor.

               Palavras de Chico, como secretário: “Nunca nos passou
pela cabeça proibir ou sugerir a proibição de quaisquer tendências.
Quem quiser tê-los que os pague, apenas isso. São muitas as
distorções, admitamos. Não faz muito tempo vaiaram Sivuca em festa
junina paga com dinheiro público aqui na Paraíba porque ele, já
velhinho, tocava sanfona em vez de teclado e não tinha moças seminuas
dançando em seu palco. Vaias também recebeu Geraldo Azevedo porque ele
cantava Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro em festa junina financiada
pelo governo aqui na Paraíba, enquanto o público, esperando a dupla
sertaneja, gritava "Zezé cadê você? Eu vim aqui só pra te ver".”

               Dizem que Chico César está sendo intolerante. Talvez
devêssemos nós, como “baluartes” da dignidade, nos colocarmos de forma
a não tolerar mais certas manifestações “culturais” que nos enfiam
goela abaixo valores distorcidos em forma de canções “divertidas”. Não
sou preto na pele, não sou musicalmente talentoso como nosso
secretário de Cultura, mas aproveito alguns poucos fios de cabelo que
agrisalham minha cabeça para cantar com Chico:


Respeitem meus cabelos, brancos
Chegou a hora de falar
Vamos ser francos
Pois quando um preto fala
O branco cala ou deixa a sala
Com veludo nos tamancos.

[Texto publicado na coluna #CotidianaMente, do Jornal A União, em 20/04/2011]

Um comentário:

  1. Muito bom texto! Mesmo não sendo do meu gosto musical o que canta o Chico César sua atitude em não contratar lixos audiovisuais foi digna de aplausos...

    Abraços.

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